sexta-feira, junho 18, 2010

O ano da morte de José Saramago




No dia seguinte ninguém morreu. Não: você morreu. E eu escrevo. O ano de sua morte começou como qualquer outro: nada de ficção, nada de poesia: uma vida pobre, como costuma ser a nós: uma vida em que com, muito esforço, se cava e se acha o ouro da poesia que, cada vez menos, parece existir: o mundo. O ano começou igual, mas não: é o ano de sua morte. Todavia, sua voz dura, áspera, cortante, cansada, a ponto de se entregar ao riso, me diz: é, apenas, mais um ano: é a morte, é a vida.
No dia seguinte ninguém morreu. Não: você morreu, mestre. E eu escrevo, neste dia seguinte, que sempre será seguinte. E - ironia? acaso? – hoje é o dia seguinte àquele que, numa livraria, mecânico, comprei um seu livro, escrevi uma dedicação e, hoje, o dou de presente. Mas sua morte? E, mais uma vez, sua voz: é a morte, é a vida.
E, aqui, uma folha em branco a minha frente, mas hoje é tão escura, é tão escuro: que fazer dessa folha em branco que me pede que lhe escreva. Que escrever? A folha, branca, grita dizendo-me para escrever sua morte, mas é tão escura! Que dizer sobre a morte? Letras e letras e letras: palavras: caem na folha branca, mas nada dizem. A morte é escura, como torná-la clara e, com tinta, dar a ver sua morte? E, outra vez, sua voz: é a morte, é a vida, é o nada.
E a folha, branca, branca diz, com suas palavras: o melhor era se calar, se é que outro procedimento tem justificação perante a morte. No dia seguinte você morreu e... o resto é silêncio.
Todavia, há muito de seu aqui, no peito, na mente, em suas palavras: com sua lucidez pôde mostrar-nos a nossa cegueira, dar-nos novas boas novas – sob aparência cáustica, mas boas: um novo evangelho mais caridoso. Palavras que nos disseram da nossa ilha mestre, tão desconhecida, tão distante e tão próxima de nós. Ou, talvez, a mensagem do amor que vence até a morte: rendição, mestre? Mas sua mesma voz diz: é a morte, é a vida. E assim, mestre, continua falando, baixo, em tempos em que só se ouve esse falar com ouvidos atentos ao baixo – tão alto, no fundo.
Uma folha em branco, mas tão escura!
Perante a morte é isso que nos resta: só silêncio. No entanto, é o silêncio de uma voz que continuará dizendo pela eternidade – uma eternidade que não se sabe até quando irá.
E é essa voz que explica, Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala, mestre, escreveram essas mãos que já não escrevem, mas que, solares, resistem.
No dia seguinte ninguém morreu. Não: você morreu. Não: você não morreu: No dia seguinte ninguém morreu.

Felipe Leal

1 comentários:

Giovani Iemini disse...

andré,
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[]s